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O SOFT LAW E A REGULAÇÃO SUNSHINE NO BRASIL

Infraestrutura e Regulatório - 27 de fevereiro de 2022

O SOFT LAW E A REGULAÇÃO SUNSHINE NO BRASIL

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*Artigo publicado originalmente na coluna Público & Pragmático da revista Consultor Jurídico, no dia 27 de fevereiro de 2022.

Por Gustavo Justino de Oliveira* e André Castro Carvalho**

No que concerne à temática de soft law, ganha especial relevância a questão relativa às normas que vem sendo editadas por agências reguladoras, em especial duas normas de referência (NRs) aprovadas pela Agência Nacional de Águas (ANA) no ano passado (Norma de Referência nº 1/2021 e Norma de Referência nº 2/2021). Isso porque há liberdade para adesão a tais normas, não existindo, portanto, obrigação legal e tampouco compulsoriedade para seu atendimento [1]. Desse modo, com o fim de promover a conformidade com as normas de referência, promovendo a uniformização da regulação, a estratégia empregada trata do incentivo econômico de acesso a recursos federais, nos termos do artigo 50, III, §8º, da Lei nº 11.445/07.

É um manifesto mecanismo de soft law, cujo princípio é regido pela voluntariedade de adesão, isto é, pela não obrigatoriedade de seguimento de suas diretrizes por parte dos interessados. Apesar do que se pode cogitar em uma primeira análise, a falta de obrigatoriedade não está condicionada a levar o modelo proposto ao fracasso, na medida em que outras condicionantes e instrumentos de coerção podem emprestar força para o seu atendimento [2], além de representar um critério normativo que estabelece boas práticas para o setor.

Diversos instrumentos de indução já são empregados pela União com o fim de orientar condutas de outros entes federativos [3]. O próprio artigo 50 da Lei nº 11.445/07, antes da Lei nº 14.026/20, já previa mecanismo de spending power [4] para efetividade da norma. Contudo, o novo Marco do Saneamento deu-lhe nova amplitude e aplicação [5].

Assim, com a previsão do artigo 50, III, §8º, da Lei nº 11.445/07, apenas aqueles que atendam às NRs poderão obter acesso a recursos federais, acentuando a relevância e pressão para conformidade em relação às normas, por meio de evidente mecanismo de soft law [6].

Além disso, nos últimos anos vem ganhando força a técnica internacional conhecida como Regulação Sunshine, ou Regulação por Exposição Aplicada (RAE). Em suma, trata-se de uma metodologia cujos princípios levam à delimitação de um grupo de indicadores relevantes, estabelecendo parâmetros para sua avaliação e traduzindo os resultados em sinais de simples compreensão. O emprego da RAE permite que agências reguladoras de saneamento não precisem empregar vultosos recursos para atender aos requisitos legais de monitoramento e avaliação dos prestadores de serviço [7].

O método de Regulação Sunshine é fundado na publicidade dos resultados do desempenho dos prestadores de serviços e na sua comparação com as demais entidades do mesmo setor. Isso permite que os prestadores com pior desempenho sejam pressionados pela sociedade, pelo poder publico e pela concorrência com outros prestadores. Seu poder coercitivo é notoriamente limitado [8], o que coloca em evidência sua relação com o soft law.

Juliano Heinen [9] ilustra que a RAE é uma excelente maneira de se gerar benchmark e de se trazer maior transparência e controle social nos serviços de saneamento básico, ou seja, é uma importante ferramenta de accountability — hoje um dos principais princípios de compliance — positivada, por exemplo, pelo artigo 6º, X, da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais — LGPD).

A experiência portuguesa, conforme demonstram Rui Cunha Marques e Pedro Simões [10], mostrou um progresso considerável após maiores pressões dos usuários e ações políticas na melhoria dos serviços de saneamento. Tais situações de estresse entre sociedade e prestadores de serviços já vêm ocorrendo no Brasil há alguns anos em algumas searas de serviço público, como no transporte coletivo, por exemplo [11].

No contexto europeu, é bastante ventilada a técnica do name and shame como forma de gerar competição saudável entre as empresas, geralmente com retornos positivos na prestação dos serviços públicos — conforme o estudo de Kristof de Witte e David Saal [12].

Nesse sentido, exposição e discussão pública do comportamento do regulado desencadeiam efeitos muito positivos, introduzindo competitividade entre as entidades reguladas e obtendo como resultado o aprimoramento em sua performance [13]. Outrossim, o processo de exposição pública está em plena consonância com o direito de acesso à informação do cidadão, consagrado pela Lei nº 12.527/11.

Para que a RAE seja eficaz, cumpre que sejam satisfeitas as seguintes condições: 1) a publicação dos resultados não deve corresponder somente a atos da entidade regulada em causa, mas incluir também os seus correspondentes para que a comparação entre operadores seja possível; 2) os resultados devem ser difundidos, conjuntamente com valores ótimos ou de referência; 3) a publicação dos resultados deve ser próxima e acessível aos consumidores, principalmente através de website; e 4) devem ser promovidas discussões públicas sobre os resultados evidenciados [14]. Além disso, é essencial que os resultados da avaliação sejam expostos em diagnósticos simples de prestação dos serviços, aos quais usuários, concessionárias e poder concedente possam ter fácil acesso [15].

No Brasil, existem ao menos três experiências recentes de RAE, mais precisamente no Ceará (Resolução Arce nº 222/17), no Distrito Federal (Resolução Adasa nº 08/16) e em Santa Catarina (Resolução Aris nº 008/16) [16]. Considerando, porém, que se trata de metodologia compatível com os intentos do novo Marco do Saneamento, a multiplicação de experiências de RAE seria bem-vinda no resto do território nacional — e é o que esperamos para os próximos anos.

Referências

*Gustavo Justino de Oliveira é professor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor, advogado especializado em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados

**André Castro Carvalho é mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE), professor de pós-graduação e educação executiva em diversas escolas de negócios e membro de órgãos de governança corporativa em São Paulo.

[1] OLIVEIRA, Carlos Roberto de. Novo marco regulatório para o saneamento básico: estratégias para definição, capacitação e acompanhamento das normas de referência emitidas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico — ANA. Brasília: Programa Cátedras Brasil, 2021, p. 25.

[2] OLIVEIRA, Carlos Roberto de. Novo marco… (op. cit.), p. 26.

[3] Ibid, p. 26.

[4] Pode ser traduzido literalmente como “a força do dinheiro”. Cf. ENGDAHL, D. The Spending Power. Duke Law Journal, v. 44, n. 1, p. 1-109, Oct. 1994. Disponível em: https://scholarship.law.duke.edu/dlj/vol44/iss1/1/. Acesso em: 1/10/2021.

[5] OLIVEIRA, Carlos Roberto de. Novo marco… (op. cit.), p. 27.

[6] Ibid, p. 27.

[7] CÔRTES, Larissa Silveira et al. Regulação Sunshine Aplicada às Prestadoras Locais do Sudeste. XVIII Exposição de Experiências Municipais em Saneamento, Uberlândia, Maio 2014, p. 2.

[8] CÔRTES, Larissa Silveira et al. Regulação Sunshine… (op. cit.), p. 2.

[9] HEINEN, Juliano. Pela longa estrada da vida na regulação do saneamento básico no Brasil. In: Revista Consultor Jurídico. 17/8/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-17/juliano-heinen-regulacao-saneamento-basico-brasil. Acesso em: 11/10/2021.

[10] Does the sunshine regulatory approach work? Governance and regulation model of the urban waste services in Portugal. Resources, Conservation and Recycling, 52, 2008, pp. 1040–1049.

[11] CARVALHO, André Castro. Middle class and public services in Brazil: commodity boom, economic crisis, and protests for a better public transportation system. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, nº 39, p. 109-133, dez. 2018.

[12] Is a little sunshine all we need? On the impact of sunshine regulation on profits, productivity and prices in the Dutch drinking water sector J Regul Econ, v. 37, 2010, p. 239.

[13] MARQUES, R. C. Regulação de Serviços Públicos. 1ª ed. Lisboa: Silabo, 2005.

[14] MARQUES, R. C. Regulação… (op. cit.).

[15] CÔRTES, Larissa Silveira et al. Regulação Sunshine… (op. cit.), p. 3.

[16] COSTA, Samuel Alves Barbi et al. Projeto Sunshine: a Regulação por Exposição Aplicada ao Estado de Minas Gerais. X Congresso Brasileiro de Regulação, Florianópolis, Setembro 2017, p. 2.