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A COMPETIÇÃO ENTRE ESTATAIS E EMPRESAS PRIVADAS NO NOVO MARCO DO SANEAMENTO

Infraestrutura e Regulatório - 30 de janeiro de 2022

A COMPETIÇÃO ENTRE ESTATAIS E EMPRESAS PRIVADAS NO NOVO MARCO DO SANEAMENTO

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*Artigo publicado originalmente na coluna Público & Pragmático da Revista Consultor Jurídico, no dia 30 de janeiro de 2022.

Por Gustavo Justino de Oliveira* e André Castro Carvalho**

O advento do Novo Marco do Saneamento (Lei nº 14.026/20) fez com que fosse instituído um sistema de ampla concorrência, impulsionando as estatais de saneamento para a atuação em novas formas de negócios, bem como para a busca de novos mercados nacionais — agora, não mais focados nos âmbitos territoriais, locais e regionais, dos entes que as criaram [1]. A finalidade desse empreendimento é utilizar a competição para fazer com que as estatais se mantenham tão engajadas e eficientes economicamente quanto as empresas privadas que atuam no segmento.

O sistema de ampla concorrência inaugurado é uma das inovações trazidas pela Lei federal nº 14.026/2020, que é muito mais que simples atualização do marco legal original: “percebe-se com clareza que tal aggiornamento não somente ocorreu, como foi bastante acentuado e verticalizado, não sendo totalmente equivocado referir-se a um ‘novo marco legal do saneamento básico'” [2].

Além da questão referente à concorrência e competitividade, o Novo Marco Legal do Saneamento consagra outras inovações. Cite-se: a uniformidade da regulação e novas atribuições à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), o incentivo à prestação regionalizada dos serviços de saneamento e o sistema de financiamento relativo ao acesso a recursos federais [3].

Segundo os Professores Sergio Valls Hernández e Carlos Matute González [4], o Direito Administrativo tradicional enxerga a possibilidade, nos serviços públicos, de gestão direta (pela própria administração sem órgão próprio, com órgão próprio ou com alguma entidade paraestatal por meio de uma entidade), indireta (com a concessão, sub-rogação e arrendamento) e mista (gestão interessada por encomenda a empresa privada e gestão por sociedade de economia mista).

No caso brasileiro, “[h]á tempos o Estado reconhece e utiliza métodos consensuais, consagrando os contratos como formas adequadas à instrumentalização de compromissos no território das relações patrimoniais” [5]. Por esse instrumento, “(…) a ela transfere a execução de atividades estatais qualificadas como serviços públicos” [6].

A Lei nº 14.026/20 estipula apenas duas formas de prestação de serviços de saneamento: a direta, por entidade que integre a administração do ente titular do serviço; ou indireta, precedida de licitação. Nos termos do artigo 10 da Lei nº 11.445/07, incluído pela Lei nº 14.026/20:

“Artigo 10. A prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária.”

Há, ainda, a hipótese tipicamente denominada “terceirização de serviços públicos” ou “prestação descentralizada”, não delineada expressamente no artigo 10. Trata-se da hipótese de descentralização junto à iniciativa privada, prevista no Capítulo III do Decreto-Lei nº 200/67, o qual prevê, em seu artigo 10, §7º que:

“Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e contrôle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.”

A esta espécie de prestação de serviços públicos, a Lei nº 8.666/93 fez também referência em seu artigo 6º, VIII [7], e em seu artigo 10 [8], denominando-a “execução indireta”. Vale mencionar que o Decreto nº 9.507/18, em seu artigo 2º, atribui ao ministro de Estado da Economia a competência para estabelecer os serviços que serão preferencialmente objeto de execução indireta mediante contratação. No artigo 3º, determina que não poderão ser objeto de execução indireta na administração pública federal direta, autárquica e fundacional, os serviços: (1) que envolvam a tomada de decisão ou posicionamento institucional nas áreas de planejamento, coordenação, supervisão e controle; (2) que sejam considerados estratégicos para o órgão ou a entidade, cuja terceirização possa colocar em risco o controle de processos e de conhecimentos e tecnologias; (3) que estejam relacionados ao poder de polícia, de regulação, de outorga de serviços públicos e de aplicação de sanção; e (4) que sejam inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou da entidade, exceto disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.

Ainda, a Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/21) incluiu artigo referindo-se especialmente aos casos de terceirização de serviços públicos (artigo 48). Cumpre esclarecer que, embora seja silente quanto ao tema, o Novo Marco do Saneamento não proibiu esse tipo de contratação pelo Poder Público. Está, portanto, permitida a prestação descentralizada ou terceirização de serviços públicos, sem necessidade de contrato de concessão, aplicando-se a Lei nº 8.666/93 e a Lei nº 14.133/21 para os serviços que permitem esse tipo de prestação descentralizada, a exemplo de varrição de ruas e outras atividades de saneamento básico que não exigem investimentos de capital (Capex) que justifiquem a celebração de um contrato de concessão que ultrapasse décadas.

Por sua vez, o §3º do artigo 10 determina que “[o]s contratos de programa regulares vigentes permanecem em vigor até o advento do seu termo contratual”, por força de segurança jurídica e respeito ao ato jurídico perfeito, nos termos do artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

Nesse ponto, também é pertinente fazer menção à Resolução ANA nº 79, de 14 de junho de 2021, que aprovou a Norma de Referência nº 1 para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico. Tal NR, por sua vez, dispõe sobre o regime, a estrutura e os parâmetros da cobrança pela prestação do serviço público de manejo de resíduos sólidos urbanos, bem como os procedimentos e prazos de fixação, reajuste e revisões tarifárias.

Em consonância com a Lei nº 14.026/20, em seu item 5.3.1 [9], a NR menciona a possibilidade de prestação de serviços pela Administração Direta, Indireta ou mediante contrato de concessão. Cabe, porém, esclarecer que no caso da Administração Indireta a prestação também poderia se dar por meio de contrato de concessão, o que aponta para a consistência técnica da NR com o Novo Marco do Saneamento.

Isso porque ficou evidente a possibilidade de se ter prestação de serviços diretamente pelo Estado, indiretamente mediante entidade de mesma titularidade (tal como prevê o artigo 10 da Lei nº 14.026/20), e, finalmente, por meio de contrato de concessão, o qual pode ser celebrado com estatal que esteja atuando em outro ente federativo diverso de titularidade, ou com empresas privadas ou semiestatais — visto que essas não integram a Administração Pública [10].

Na hipótese de o titular não almejar realizar a prestação direta, extintos os contratos de programa em vigor, os respectivos serviços de saneamento deverão ser licitados concorrendo para elas tanto as Cesbs quanto as empresas privadas de saneamento. Promoveu-se, assim, o rompimento da posição assimétrica que as Cesbs ocupavam, o que as colocava como atores privilegiados para a prestação do saneamento básico. Isso levou a que passassem a concorrer com as empresas privadas em igualdade de condições, em processos licitatórios, para a celebração de contratos de concessão em novas avenças para a prestação do serviço de saneamento básico.

Cabe esclarecer que isso não quer dizer que, com o Novo Marco do Saneamento, as Cesbs deixaram de ter razão constitucional de existência, nos termos em que prevê o artigo 173 da Constituição Federal. Elas continuam a ter papel fundamental na prestação e expansão dos serviços de saneamento no cenário nacional, dentro do ente de sua titularidade. Fora dessa jurisdição, no entanto, passam a atuar em ambiente competitivo.

O Novo Marco do Saneamento, inequivocamente, exigirá que algumas estatais se reinventem. Em outras palavras, caso elas não sejam capazes de operar de modo eficiente, orientando-se a buscar os objetivos sociais aos quais são destinadas, tornar-se-ão obsoletas e deixarão de atender aos objetivos que levaram à sua constituição [11], não conseguindo celebrar futuros contratos para os serviços.

Portanto, a Lei nº 14.026/20 estabeleceu que as estatais devem atuar em regime de competição com o setor privado para a prestação dos serviços de saneamento, impondo que se adaptem ao ambiente do mercado, marcado pela concorrência. Tal é a abrangência da expressão “a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação nos termos do art. 175 da CF/88” contida no retromencionado artigo 10 da Lei nº 14.026/20.

Imperioso ressaltar que, recentemente, foi aprovada a Norma de Referência ANA nº 2, a partir da Resolução ANA nº 106, de 4 de novembro de 2021, “que dispõe sobre a padronização dos aditivos aos Contratos de Programa e de Concessão, para prestação de serviços de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário, para incorporação das metas previstas no Art. 11-B da Lei nº 11.445/2007, modificada pela Lei nº 14.026/2020”.

Tais preceitos aplicam-se aos contratos firmados entre o titular e o prestador do serviço à luz da vigência da Lei nº 11.107/2005, bem como às concessões, convênios e demais instrumentos celebrados anteriormente à vigência da Lei nº 11.107/2005, além das concessões firmadas mediante licitação sem metas universais previamente estabelecidas e, também, das concessões firmadas mediante licitação que contenham metas que não atinjam o patamar estabelecido pelo Novo Marco Legal — sendo que nesses últimos dois casos fica facultado o estabelecimento de adivitivos para inclusão das metas sobreditas (artigo 11-B do novo marco).

A NR-2 é mais um importante passo normativo que vem para contribuir com o objetivo de universalização dos serviços de água e esgotamento sanitário, mediante fixação de critérios para aditivos e indicadores hábeis a monitorar periodicamente o cumprimento das metas legais positivadas no artigo 11-B do Novo Marco do Saneamento, contribuindo, assim, com a evolução da governança regulatória setorial e, consequentemente, trazendo mais transparência e atratividade aos negócios.

Portanto, nos próximos anos deveremos observar muitas oportunidades de mercado para as estatais expandirem suas atividades, bem como as empresas concessionárias de serviços públicos de saneamento básico, o que deve promover uma melhoria na qualidade da prestação de serviços ao usuário final.

Referências

*Gustavo Justino de Oliveira é professor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor, advogado especializado em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados

**André Castro Carvalho é mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE), professor de pós-graduação e educação executiva em diversas escolas de negócios e membro de órgãos de governança corporativa em São Paulo.

[1] TRINDADE, Karla Bertocco; ISSA, Rafael Hamze. Primeiras impressões a respeito dos impactos da Lei nº 14.026/20 nas atividades das empresas estaduais de saneamento: a questão da concorrência com as empresas privadas. In: GUIMARÃES, Bernardo Strobel; VASCONCELOS, Andréa Costa de; HOHMANN, Ana Carolina (Coord.). Novo marco legal do saneamento. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 26.

[2] JUSTINO DE OLIVEIRA, Gustavo; FERREIRA, Kaline. A mediação e a arbitragem dos conflitos no setor de saneamento básico à luz da Lei federal nº 14.026/20. In: GUIMARÃES, Bernardo Strobel; VASCONCELOS, Andréa Costa de; HOHMANN, Ana Carolina (Coord.). Novo marco legal do saneamento. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 377.

[3] Ibidem.

[4] HERNÁNDEZ, S. V.; GONZÁLEZ, C. M. Nuevo Derecho Administrativo. 4. ed. Ciudad de México: Porrúa, 2014, p. 548.

[5] OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de gestão. São Paulo: RT, 2008, p. 28.

[6] Ibidem.

[7] Artigo 6º. Para os fins desta Lei, considera-se: VIII – Execução indireta – a que o órgão ou entidade contrata com terceiros sob qualquer dos seguintes regimes: a) empreitada por preço global – quando se contrata a execução da obra ou do serviço por preço certo e total; b) empreitada por preço unitário – quando se contrata a execução da obra ou do serviço por preço certo de unidades determinadas; c) (Vetado). d) tarefa – quando se ajusta mão-de-obra para pequenos trabalhos por preço certo, com ou sem fornecimento de materiais; e) empreitada integral – quando se contrata um empreendimento em sua integralidade, compreendendo todas as etapas das obras, serviços e instalações necessárias, sob inteira responsabilidade da contratada até a sua entrega ao contratante em condições de entrada em operação, atendidos os requisitos técnicos e legais para sua utilização em condições de segurança estrutural e operacional e com as características adequadas às finalidades para que foi contratada.

[8] Art. 10. As obras e serviços poderão ser executados nas seguintes formas: I – execução direta; II – execução indireta, nos seguintes regimes: a) empreitada por preço global; b) empreitada por preço unitário; c) (Vetado). d) tarefa; e) empreitada integral.

[9] “5.3. Metodologia de cálculo da Receita Requerida 5.3.1. Deve ser adotada metodologia de cálculo que reflita a RECEITA REQUERIDA, adequada ao tipo de prestação, seja ela pela Administração Pública Direta, Indireta ou mediante contrato de concessão”.

[10] Mario Saadi (Empresa semiestatal. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 118-119) corrobora esse entendimento ao analisar o caso da SANEPAR no Paraná.

[11] GUIMARÃES, Bernardo Strobel; PEREIRA, Rafaella Krasinski Alves. Empresas estatais de saneamento básico, novo marco legal e parcerias com a iniciativa privada. In: GUIMARÃES, Bernardo Strobel; VASCONCELOS, Andréa Costa de; HOHMANN, Ana Carolina (Coord.). Novo marco legal do saneamento. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 47.