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Influências do pragmatismo nas compras públicas de soluções inovadoras

Revista ConJur - 13 de julho de 2022

Influências do pragmatismo nas compras públicas de soluções inovadoras

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*Artigo publicado originalmente na coluna Público & Pragmático, da revista Consultor Jurídico, no dia 10 de julho de 2022

Por Gustavo Henrique Justino de Oliveira e Thiago Guimaraes de Barros Cobra

O Direito Público brasileiro tem evidenciado traços de pragmatismo em diversos institutos, desde a releitura de princípios norteadores da atividade da administração pública, como a supremacia e a indisponibilidade do interesse público, à própria positivação de ferramentas de caráter pragmático, orientadas a uma “administração de resultados”, como a abertura para soluções por meio de arbitragem em contratos administrativos e acordos decisórios em processos sancionatórios.

Entretanto, é na estruturação do “framework” de compras públicas voltadas à transformação digital do Estado que o pragmatismo tem apresentado substanciais contribuições, no sentido de sofisticar técnicas para a troca de informações e contratação de serviços junto ao setor privado, formado predominantemente por startups.

O Estado brasileiro tem dado sinais de abertura à modernização desde 2004, com o advento da Lei da Inovação (Lei 10.973, de 2 de dezembro de 2004). Mas, foi por meio das alterações trazidas pela Lei 13.243, de 11 de janeiro de 2016, que se passou a admitir a contratação de instituição científica, tecnológica e de inovação (ICT) para a solução de problema técnico, por meio de desenvolvimento e inovação que envolvesse risco tecnológico.

A figura das encomendas tecnológicas se revelou inovadora ao enfocar a contratação a partir de uma ótica contextual de um problema técnico específico, ao invés de se pautar na delimitação precisa do que se pretende contratar. Vislumbrou-se traços do consequencialismo, por meio do espaço à experimentação. Todavia, esta figura jurídica ainda teve alcance limitado, ante a exigência de risco tecnológico para sua aplicação.

Em 2021, em um contexto de necessidades socioeconômicas e desafios de gestão ocasionadas pela pandemia da Covid-19, o ordenamento jurídico recebeu novas ferramentas para disciplinar a relação entre Estado e tecnologia, notadamente sobre compras públicas.

Lei do Governo Digital (Lei 14.129, de 29 de março de 2021) estabeleceu princípios e diretrizes voltados ao incremento da eficiência pública por meio de soluções inovadoras, como a desburocratização, a modernização e a simplificação da relação do poder público com a sociedade.

A dificuldade do próprio gestor público em compreender quais seriam os desafios desta transformação demandou soluções de caráter eminentemente pragmático a fim de permitir um diálogo com particulares detentores de recursos tecnológicos. O tradicional “chinese wall” administrativo tem cedido moderado espaço a ambientes de diálogo e cooperação para obtenção de informação pelo Estado de forma legítima. Perpetuar o isolamento da administração em nome de uma aparente isonomia tenderia a obstar ou no mínimo atrasar consideravelmente a transformação digital proposta.

Para atender essa transformação do Estado em uma plataforma de serviços, fez-se necessário o desenvolvimento de marcos legais para contratações públicas mais arrojados, seguindo o caminho iniciado pelas encomendas tecnológicas, porém sem a restrição de objeto envolto necessariamente em risco tecnológico.

Neste sentido, destacam-se a Nova Lei de Licitações (NLL) — Lei 14.133, de 1º de abril de 2021 — e o Marco Legal das Startups (MLS) — Lei Complementar 182, de 1º de junho de 2021.

Na NLL, verifica-se forte traço pragmático na inovação trazida pelo Diálogo Competitivo. Nesta modalidade, tem-se uma fase dialógica de negociação de aspectos técnicos, econômicos, financeiros e jurídicos do futuro projeto que será contratado, permitindo o Poder Público contratante compreender melhor suas próprias necessidades e promover uma contratação exequível, compatível com as condições reais.

Outra figura relevante é o procedimento de manifestação de interesse, preexistente de modo esparso na legislação, vetado pela Lei 8.666, e agora também incorporado à NLL. Embora também denote a abertura do Estado à consensualidade e participação, este último não se destina diretamente às compras públicas, sendo um procedimento auxiliar (artigo 81), não estando necessariamente atrelado a uma solução inovadora pretendida pelo estado.

Por sua vez, o MLS inovou consideravelmente ao dispor sobre modalidade de contratação de soluções inovadoras já desenvolvidas ou a serem desenvolvidas junto a pessoas físicas ou jurídicas, isoladamente ou em consórcio.

Os critérios de julgamento das propostas deixam de lado parâmetros tradicionais quantitativos, e passam a considerar uma análise qualitativa consequencial, sendo eles: o potencial de resolução do problema pela solução proposta, a provável economia para a administração publica, o grau de desenvolvimento da solução, a viabilidade e maturidade do modelo de negócio, a viabilidade econômica da proposta, levando em consideração os recursos financeiros disponíveis, e por fim a demonstração comparativa de custo e benefício entre as propostas.

As startups concorrentes poderão se propor a resolver a mesma demanda pública, trabalhando em conjunto. O Contrato Público de Solução Inovadora (CPSI) poderá ser celebrado com uma ou mais propostas, sendo necessária a previsão editalícia quanto ao máximo de propostas selecionáveis.

Ao final do CPSI, desenvolvido um produto ou processo que atenda à necessidade do ente público, este poderá celebrar o seu fornecimento com a mesma empresa, ou uma das empresas, em caso de pluralidade, sem a necessidade de nova licitação.

Ainda, na fixação de preços do CPSI, haverá uma fase de negociação, a fim de se obter condições econômicas mais favoráveis à administração, em contraponto com a flexibilização de garantias e qualificação técnica e econômico-financeira, dadas as características de empresas startups de se encontrarem em estágios iniciais de operação.

O que se percebe, portanto, é que sobram ao gestor alternativas instrumentais para a demanda crescente de modernização. As ferramentas trazidas por estas novas modalidades licitatórias se mostram promissoras ao desenvolvimento do diálogo transparente entre Estado e iniciativa privada, superando entraves que assombravam as modalidades licitatórias tradicionais, como o pregão.

Entretanto, após quase 30 anos de existência da Lei de Licitações e Contratações Públicas (Lei 8.666), os gestores públicos que sempre mantiveram com esta uma relação de tensão e animosidade, parecem agora se mostrar saudosos, à beira de seu leito de morte, durante os dois anos de coexistência com a NLL.

O Estado é chamado a revisar suas posturas, experimentar, planejar, desenvolver diálogos e, agora que esta abertura pode ser feita de maneira legítima, parece haver somente uma tímida adesão.

Não são raros os casos de contratação de serviços de transformação digital pouco transparentes e que parecem pouco entender sobre o próprio objeto contratado, firmados com base em uma alegada inexigibilidade de licitação por notória especialização, em meio a um oceano de empresas de tecnologia que nascem todos os dias.

Também não são raros os casos de gestores ainda paralisados, temerosos quanto ao ímpeto punitivo dos controladores, apesar do esforço da Lei nº 13.655, de 2018, ao inserir diversos dispositivos à Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (Lindb), notadamente o artigo 22, que convida gestores e controladores a falarem a mesma língua, em um exercício de empatia e consideração das dificuldades e limitações de cada decisão.

O ordenamento positivado atendeu aos clamores de modernização do Estado como um todo. Resta aos gestores transformarem sua própria cultura, que demanda melhor técnica de planejamento e fundamentação de seus atos, mas certamente apresentará melhores resultados.

Referências

 é professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da USP e no IDP (Brasília-DF), árbitro, consultor, advogado especialista em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados.

Thiago Guimaraes de Barros Cobra é advogado em São Paulo, mestrando em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Advocacia e MBA em Gestão de Política Públicas e Governamentais pela Escola Paulista de Direito.