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A ADPF 559/SP e a regulamentação normativa dos contratos de gestão

Revista ConJur - 20 de julho de 2022

A ADPF 559/SP e a regulamentação normativa dos contratos de gestão

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*Artigo publicado originalmente na coluna Público & Pragmático, da revista Consultor Jurídico, no dia 17 de julho de 2022

Por Gustavo Justino de Oliveira, Eduardo Rego, Gustavo Henrique Carvalho Schiefler e Gabriela Pereira

No final do mês de junho, foi publicada a decisão de mérito da ADPF 559/SP, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal com o intuito de impugnar normas paulistas que tratam das organizações sociais: o Decreto Estadual nº 62.528/2017 e, posteriormente, o Decreto Estadual nº 64.056/2018, ambos editados com a finalidade de regulamentar a Lei Complementar Estadual nº 846/1998, estabelecendo as diretrizes para a celebração de contratos de gestão pela administração pública com as organizações sociais.

As principais inconstitucionalidades arguidas constavam no Decreto Estadual nº 62.528/2017, posteriormente revogado pelo Decreto Estadual nº 64.056/2018, e diziam respeito ao seguinte: limitação das despesas de remuneração das organizações sociais conforme a média dos valores praticados no terceiro setor; definição de procedimento para locação de imóvel pela entidade com recursos do contrato de gestão; divulgação da remuneração dos cargos pagos com recursos do contrato de gestão e das contratações para fornecimento de serviços; vedação da participação de ocupantes de cargo em comissão e agentes políticos na diretoria da entidade; criação de reserva de técnica para o atendimento de contingências; e estabelecimento de meta de obtenção mínima de receitas operacionais decorrentes do equipamento ou programa público sob gestão [1].

Em que pese ter concluído pelo não conhecimento da arguição, por “ilegitimidade ativa” e “ofensa reflexa à Constituição Federal“, o voto condutor do acórdão, da lavra do ministro Luís Roberto Barroso, acabou por adentrar no mérito da causa, reafirmando o posicionamento da Suprema Corte no julgamento da ADI 1.923/DF, especialmente ao assentar que “As exigências e restrições constantes do decreto impugnado, enunciadas com base na lei regulamentada, devem ser reputadas legítimas, porque determinam a concretização da aplicação dos princípios da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência na atuação das organizações sociais“.

Da leitura atenta do acórdão, o que se extrai é que o ponto crucial para a rejeição da ADPF foi a revogação do Decreto Estadual nº 62.528/2017 pelo Decreto Estadual nº 64.056/2018.

Isso porque o ministro relator deixou transparecer em seu voto que o novo decreto — quando comparado com o anterior — seria muito menos gravoso e, portanto, mais compatível com a principiologia constitucional da administração pública (artigo 37, CF) e assim, preenchendo os requisitos de validade e constitucionalidade das restrições impostas às organizações sociais paulistas.

Com efeito, o primeiro decreto fixou normas que acabaram por desvirtuar a natureza privada das organizações sociais, na medida em que estabeleceu um regime restritivo aos contratos firmados pelas organizações sociais com o Poder Público, numa verdadeira tentativa de “estatizar” tais entidades privadas. O Decreto Estadual nº 62.528/2017 promoveu precisamente aquilo que já havia sido rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da ADI nº 1.923/DF, sob relatoria do eminente ministro Luiz Fux: “uma verdadeira autarquização das organizações sociais, afrontando a própria lógica de eficiência e de flexibilidade que inspiraram a criação do modelo” [2].

Por sua vez, o Decreto Estadual nº 64.056/2018, editado após o — e, provavelmente, motivado pelo — ajuizamento da ADPF 559/SP, apesar de apresentar problemas pontuais quanto à sua constitucionalidade, de fato corrigiu vários dos problemas apresentados pelo Instituto Brasileiro das Organizações Sociais da Saúde (Ibross), autor da ação, e pela Associação Brasileira das Organizações Sociais de Cultura (Abraosc), amicus curiae, o que tornou menos impactante a (incompleta) solução dada pelo Supremo Tribunal Federal à celeuma.

Quanto à primeira prejudicial de mérito, em sua fundamentação o ministro relator ponderou que a jurisprudência do STF exige das associações de classe a comprovação da representação da integralidade da categoria afetada pelo ato normativo impugnado, sob pena de não ostentarem legitimidade ativa para provocar a jurisdição constitucional abstrata. E como, na visão do relator, o rol de associados do Ibross (Organizações Sociais de Saúde) representaria apenas uma parcela pequena da categoria econômica atingida pelos decretos impugnados (organizações sociais de cultura, esporte, atendimento ou promoção dos direitos das pessoas com deficiência, atendimento ou promoção dos direitos de crianças e adolescentes, proteção e conservação do meio ambiente e promoção de investimentos, de competividade e de desenvolvimento), concluiu que o arguente “não detém legitimidade para propor arguição de descumprimento de preceito fundamental“.

A restrição acolhida pelo Plenário do STF decorre de jurisprudência defensiva consolidada ainda nos anos 1990, muito utilizada para afastar a legitimidade de associações de magistrados, não representativas de toda a categoria, que ajuizavam demandas do controle abstrato de constitucionalidade para impugnar normas com repercussão sobre toda a magistratura nacional [3]. Até pela especificidade dos precedentes invocados pelo ministro relator, tudo recomendaria um temperamento quanto à legitimidade do Ibross, mesmo porque a existência de uma Associação que congregue todas as espécies de organizações sociais previstas nos decretos paulistas soa bastante improvável e por isso, atualmente, é inexistente.

Quanto à segunda prejudicial de mérito, o Plenário do STF assentou que “Os supostos vícios de inconstitucionalidade do decreto impugnado, caso existentes, apenas se dariam de modo reflexo“, pois As principais irresignações manifestadas na petição inicial decorrem de comandos da Lei Complementar estadual nº 846/1998″.

Muito embora o autor da ação tenha alegado diversas inconstitucionalidades “diretas”, ou seja, vulnerações expressas à Constituição, e o Plenário do STF tenha praticamente ignorado tais alegações, o ponto é que eventual ofensa reflexa à Constituição ainda configura ofensa e, destarte, inconstitucionalidade. Apenas, na visão do STF, tal tipo de inconstitucionalidade não poderia ser analisada em sede de controle abstrato, devendo ficar adstrita às vias ordinárias.

E é aqui que se torna relevante a análise de mérito — realizada em observância ao princípio da eventualidade, mas com todo o jeito de obiter dictum — tal como empreendida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Pois ela viabiliza o controle difuso de eventuais efeitos concretos pretéritos ainda subsistentes no mundo dos fatos, provenientes da aplicação do Decreto Estadual nº 62.528/2017. Tais efeitos podem ser discutidos por aqueles que se sentirem prejudicados perante o Poder Judiciário — notadamente nas instâncias ordinárias — por meio de ações de conhecimento ou mandados de segurança, inclusive com argumentos tendentes a desencadear o aludido controle difuso de constitucionalidade.

O Supremo Tribunal Federal, apegado a uma jurisprudência um tanto quanto ultrapassada, que restringe o acesso à corte por meio do controle abstrato de constitucionalidade, perdeu ótima oportunidade de resolver definitivamente diversos pontos relevantes da celeuma envolvendo os contratos de gestão firmados pela administração pública com as organizações sociais, jogando para o futuro uma provável nova análise da questão. Isso porque a Suprema Corte deixou em aberto a possibilidade de impugnação de eventuais inconstitucionalidades constantes no Decreto Estadual nº 62.528/2017 perante as instâncias ordinárias, com decisão definitiva a ser futuramente proferida pelo próprio Supremo Tribunal Federal, provavelmente em sede de recurso extraordinário e com edição de súmula vinculante.

Referências

 é professor doutor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor e advogado especializado em Direito Público.

Eduardo Rego é doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e advogado especializado em Direito Público.

Gustavo Henrique Carvalho Schiefler é advogado no escritório Schiefler Advocacia, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, mestre e graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor e palestrante na área de licitações públicas e contratos administrativos.

Gabriela Pereira é advogada especializada em Processo Civil.

[1] Relevante mencionar que este “sumário” de inconstitucionalidades consta na própria ementa do acórdão, provavelmente sugerindo que, se o Decreto Estadual nº 62.528/2017 não tivesse sido revogado pelo Decreto Estadual nº 64.056/2018, certamente o resultado final da ADPF 559/SP teria sido outro.

[2] STF, ADI 1923, órgão julgador: Plenário, relator para acórdão: ministro Luiz Fux. Data de julgamento: 16 de abril de 2015.

[3] Cf. ADI 5.785-AgR, Pleno, relatora ministra Rosa Weber; ADI 5.411, relator ministro Luiz Fux; ADI 4.443, relator ministro Dias Toffoli.